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A grama mais verde

A ideia de uma vida mais próspera na América do Norte e na Europa leva imigrantes a enfrentarem travessias perigosas e se sujeitarem a uma vida à margem da lei. O que acontece daqui até lá, é onde mora o problema. Não sabemos.

“E as meninas, estão bem?”

“Estão sim, ainda estão no México.”

“Não conseguiram atravessar?”

“Ainda não”

“Essas meninas, viu…”

Três adolescentes afegãs conversam com seu professor de dança em um centro cultural árabe, na região central de São Paulo. Enquanto passam suas tardes no Brasil, amigas tentam a sorte na fronteira entre o México e os Estados Unidos. De longe, se preocupam.

Pela minoridade, os nomes das adolescentes não aparecem na reportagem – nem os de suas famílias, para que não sejam identificadas. Chegadas com os pais no país, suas famílias ficaram amigas pela convivência em São Paulo. Os pais, que estudaram no Afeganistão, procuram bolsas de estudo no Brasil.

Uma delas relata que sentiu vontade de ir com as colegas – que também conheceu durante sua estadia em São Paulo, depois de fugir do Talibã em 2022 –, ainda que saiba que a façanha que elas tentam executar é arriscada. Aos 15 anos, passou a vida vendo americanos pelas ruas da sua cidade, vendo filmes e ouvindo músicas em inglês.

Aqui é feliz. Pode estudar – o que não faria se estivesse em seu país. A vida é mais tranquila do que seria nos vizinhos Irã e Paquistão. Gosta da vida no Brasil, mas a vida nos Estados Unidos parece mais glamurosa.

 

American dream

Falar sobre a ocupação americana com os imigrantes afegãos é uma missão complicada. Têm medo de serem identificados e que suas famílias, que ainda estão no país de origem, sejam retalhadas.

A concepção comum é a de que a vida nos Estados Unidos é melhor, e sobretudo, mais fácil.

Vale ressaltar que o Afeganistão foi ocupado por soldados americanos por 20 anos. Por isso, muitos afegãos estão mais habituados à cultura americana do que à brasileira. Falam inglês, mas não português.

Ouviram histórias de conhecidos que se mudaram para lá, em diferentes estados, e conquistaram uma vida estável. Sabem muito sobre o que acontece nos EUA, seja por convivência com americanos no Afeganistão, seja pelo contato frequente com material cultural do país –consequência de um processo de dominação militar e intelectual.

Uma das meninas relata ter visto muitos filmes americanos na infância e na adolescência, o que a fez sonhar com estudar nas escolas de lá. A vida americana é mais familiar do que a brasileira.

Said Sadat, afegão que vive em Guarulhos, relata que, enquanto decidiu ficar no Brasil e empreender, o restante da sua família vive nos Estados Unidos.

Vivem bem. Os irmãos trabalham no comércio, ganham um salário médio. São alguns dos poucos que conseguiram permanecer de forma legal no país.

Chegaram no Brasil há 18 anos, e o restante da família chegou nos EUA há 15.

“Saem [do Afeganistão] sem querer nem tentar a vida aqui [no Brasil], já querem ir para lá [EUA]”, diz Said.

Ele relata ter escolhido ficar porque no Brasil se sente em casa. Mora em Guarulhos, onde tem um pequeno comércio de produtos de beleza. Lá, a esposa, que é professora e deu aulas de inglês no Brasil, tem amigas e os filhos estão bem adaptados à escola. Falam português e brincam nas ruas.

Enquanto conversava com a reportagem, tomando chá do lado de fora do portão da sua casa, vizinhos passavam e cumprimentavam o “brimo” – apelido frequentemente atribuído a imigrantes árabes que vivem no Brasil. Ele disse que, quase vinte anos depois, é impossível corrigir o apelido.

“Os brasileiros são parecidos com os afegãos. Gostam de receber pessoas em casa, são próximos da família, falam com todos nas ruas. Nos Estados Unidos não é assim. Aqui, tratam bem minha família”, relata.

Admite, no entanto, que já sonhou com uma vida nos States. “Foi ficando”, em suas próprias palavras, no Brasil, e hoje não abandonaria o país por nenhum outro.

Um mundo inteiro

É possível argumentar que o sonho americano tenha acometido pessoas em quase todos os países do mundo.

As campanhas militares e culturais do país geraram ondas de influência que atingem todo o globo – no caso do Afeganistão, estamos falando sobre uma ocupação de 20 anos no país.

O Brasil não escapou dessa influência: segundo dados do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS, na sigla em inglês), há cerca de 230 mil brasileiros vivendo de forma ilegal no país. Os dados foram coletados até o fim de 2022.

Nosso país ocupa o 8º lugar dessa lista. Na liderança estão México (4,8 milhões de imigrantes irregulares nos EUA), Guatemala (750 mil), El Salvador (710 mil), Honduras (560 mil), países mais próximos geograficamente da América do Norte. No final do top 10, estão China e Índia, com 220 mil e 210 mil, respectivamente.

Não é difícil compreender o fascínio dos afegãos pelos EUA. É provável que alguém do seu círculo tenha imigrado. O que muda são os contextos e os caminhos para chegar até lá.

Portas abertas

O Brasil foi o único país a abrir as portas para afegãos de forma tão rápida. A portaria que abriu os vistos humanitários para a população afegã foi publicada pouco mais de um mês após a oficialização do governo Talibã no poder.

Para quem sempre sonhou em chegar na “América”, uma saída conveniente: o Brasil fica na mesma massa continental que os Estados Unidos.

Quem está envolvido no acolhimento aos afegãos sabe que essa vontade existe em muitos dos migrantes, mas diz não poder impedir.

“A gente explica os perigos envolvidos, os benefícios de ficar no Brasil, mas tem gente que já vem com a cabeça feita”, disse Ana Paula Oliveira, da Afghan Rescue Refugee Organization.

Não é possível atribuir uma motivação única para esse fluxo. Cada pessoa tem uma história e um raciocínio por trás da decisão.

Um dos motivos mais citados pelos entrevistados é a língua inglesa. Muitos aprenderam o inglês enquanto viviam no Afeganistão, e aprender uma terceira língua (o português), é um desafio. O conforto com a língua reflete um conforto maior com a cultura em geral – sabem mais sobre a cultura e sociedade americanas, e não conhecem muito sobre o Brasil.

Outro motivo, é o mesmo que leva a maioria dos brasileiros, mexicanos, indianos e tantas outras nacionalidades a imigrar. A expectativa de uma vida financeira melhor.

“Se for para fazer um trabalho braçal, pelo menos lá eu ganho em dólar”, disse Emran Niazi, imigrante afegão que vive em São Paulo, ao tentar explicar as razões que levaram alguns de seus conhecidos a buscar os Estados Unidos.

Alguns pensam que a vida no Norte não deve ser tão diferente da vida que levam no Sul como refugiados.

Trabalhar em empregos que exigem pouca qualificação e muito esforço físico, ganhar um salário baixo, morar em abrigos ou casas pequenas em regiões periféricas. Tudo isso se parece com o que imaginam encontrar lá.

Muitos encaram o Brasil como um país mais pobre e com menos oportunidades do que os Estados Unidos. Pensam que encontrarão empregos melhores, ou ao menos uma remuneração em moeda forte, que permitiria comprar e possuir mais. Segurança e qualidade dos sistemas de educação básica e superior também foram citados como pontos fortes dos EUA.

Uma última razão, esta menos citada e mais específica dos afegãos, são as relações que criaram com americanos. Muitos querem ir para os Estados Unidos pois conhecem pessoas lá que podem oferecê-los oportunidades no país. Ex-patrões, colegas de trabalho, conhecidos, que estiveram no Afeganistão nos últimos 20 anos e talvez possam acomodá-los no país.

Refugiado vs. imigrante ilegal

Esses são dois status muito diferentes, por mais que possam parecer semelhantes para alguns.

Um imigrante registrado como refugiado no Brasil goza de direitos como o uso dos sistemas públicos de saúde e de imigração, da proteção da lei, da previdência social e de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família.

“Não dá para sustentar uma família com seiscentos reais”, argumenta Shogofa Fahramond, imigrante afegã que vive em São Paulo, sobre o valor do benefício.

Um imigrante ilegal vive à margem da lei. Não tem posses oficiais, empregos registrados, não goza das proteções que pairam sobre um cidadão registrado no país.

Sim, os Estados Unidos possuem uma legislação que permite o refúgio. Entretanto, esse é um registro muito difícil de obter. O país estabelece um limite de pessoas a receberem o status por ano.

Em 2022, foram 125 mil. Muitos outros entraram de forma ilegal.

Nos últimos oito anos, nos mandatos de Donald Trump e Joe Biden, as regras para o refúgio nos Estados Unidos endureceram. Antes, quem solicitava o status de refugiado poderia viver no país legalmente enquanto aguardavam o veredito de órgãos como o DHS. Agora, ainda que solicitem o status, são considerados imigrantes ilegais até que obtenham o registro como refugiado.

Segundo relatos da própria comunidade, a maioria dos afegãos entra de forma ilegal e assim permanecem.

Traição?

A imigração ilegal exige sigilo. Em geral, quem vai infringir leis não sai contando por aí.

A manutenção do segredo gerou algumas situações desconfortáveis entre brasileiros e afegãos nos últimos anos.

“Acolhemos quatro famílias, três foram embora. Só uma se despediu”, lembra Linda Lee Kim, advogada e evangelista. A pastoral do Ministério Sonho de Deus, da qual faz parte, recebeu algumas famílias afegãs desde 2022.

“É frustrante. Nós nos esforçamos para ajudar, procurar empregos, dar roupas, alimentos, e as pessoas somem. Não dizem um obrigada, não explicam para onde vão. Ficamos sentindo que fizemos em vão”, diz.

Sindy Nobre, vice-presidente da ONG Panagah, especializada no acolhimento de afegãos, relata que isso já causou problemas para a instituição.

Além do acolhimento da própria ONG, a Panagah conta com parceiros cadastrados para receber e fornecer os primeiros cuidados para os migrantes.

“Tivemos casos de pessoas que alugaram um imóvel, compraram geladeira, máquina de lavar roupa, sofá, televisão, tudo mais. Quando a família afegã foi embora, ficaram só com as dívidas e a multa de rompimento de contrato do aluguel. Nunca quiseram [os brasileiros] falar conosco”, recorda Nobre.

Hoje, alertam os colaboradores sobre a possibilidade da fuga.

“O brasileiro é um pouco carente. Ele fica chateado com essa espécie de ingratidão, não entende bem o que aconteceu.”

Os que já chegam com a intenção de ir embora, não conseguem disfarçar, conta a vice-presidente. “Eles não se esforçam para aprender inglês, não gastam com nada (para economizar para a viagem), não querem criar relações.”

Ana Paula Oliveira, vice-presidente da ARRO (Afghan Rescue Refugee Organization), lembra de um ponto importante da cultura afegã – a voz do patriarca é a mais alta nas discussões familiares.

Ainda que alguém da família não queira viajar, por exemplo, a decisão do patriarca é a que vale. Se ele quiser viver na América, não há muito a ser feito, na visão das famílias.

“Houve um caso assim no abrigo em Poá. A família já estava aqui, e a filha é uma menina maravilhosa. Já estava trabalhando, falava super bem o português, estava matriculada em vários cursos. Em algum momento o pai dela decidiu que a família deveria ir para os EUA, e não teve jeito”, descreve.

O papel das ONGs nessa movimentação, para a advogada Eliza Donda, que atua em causas migratórias, é alertá-los para os perigos no caminho.

Travessia

O caminho da imigração ilegal é tortuoso. Há várias formas de trilhá-lo, nenhuma segura.

“Isso [a fuga] a gente não controla, e nem vai controlar. Não faz parte do nosso escopo controlar a vida das pessoas, mas a gente tenta que ela procure alguma segurança no processo”, destaca Donda.

“A gente sabe que muitas pessoas tentam ir por Darién (região florestal no Panamá). É uma região hostil e tudo mais, por vários motivos. A natureza é perigosa, mas não só isso. Tem crime, violência, extorsão – é uma terra sem leis em alguns pontos da floresta.”

Segundo ela, até a fronteira da Colômbia e do Panamá, a rota é mais tranquila. “Depois já não sabemos o que vai acontecer.”

“O governo panamense exige visto, deporta as pessoas, registra a biometria e envia todos esses dados para os Estados Unidos.”

Quanto mais procedimentos burocráticos para burlar, mais chances de violações da lei e dos direitos humanos no caminho. Donda lembra que, para chegar a lugares de formas escusas à lei, as pessoas estão suscetíveis a crimes de várias naturezas.

Acabam caindo na rede do tráfico humano ou podem ser usadas como “mulas” – pessoas forçadas a carregar drogas em um trajeto em nome do tráfico de drogas. Ao tentar melhorar de vida, podem arriscar suas vidas ou cair em uma situação imensamente pior.

Quem e como?

São as duas principais perguntas sem respostas neste cenário.

Não existem dados ou estimativas oficiais sobre quantos imigrantes afegãos saíram do Brasil em direção aos Estados Unidos de forma ilegal, como é da natureza das coisas que precisam existir fora dos olhos do público.

As entidades não sabem quanto custa a travessia aos imigrantes, quais instruções recebem e o que acontece depois.

O que todas as organizações sabem é que a existência de um ou mais facilitadores dentro da comunidade é altamente provável.

Pessoas que, de boca em boca, são recomendadas para quem deseja fazer a viagem. O recrutamento inquieta órgãos oficiais e do terceiro setor.

O que acontece além das fronteiras brasileiras já não cabe neste portal.

(Mais) problemas
com a lei

O defensor público da União João Chaves afirma que a discussão sobre como essa fuga pode estar afetando a formulação de leis para a manutenção da vida dos refugiados que escolhem ficar no Brasil precisa ser levantada.

Há uma visão – que, segundo ele, não é dominante – entre os agentes do governo que lidam com a migração de que o Brasil não é o destino final dos imigrantes, e, portanto, estender os benefícios destinados a esse público seria um gasto desnecessário.

É necessário, para o defensor, fortalecer as políticas e as manifestações daqueles que escolheram por aqui ficar – engrossar o coro daqueles que defendem o Brasil como um local apto e bom para a migração.

“O mais preocupante nesse caso é criar uma falsa ideia de que os afegãos estão abusando da acolhida humanitária e não querem ficar no Brasil. É uma ideia muito preconceituosa e não tem reflexão na prática”, reflete Chaves.

“Nosso argumento é que não se pode jogar a água do banho fora com o bebê junto – basear todo um universo de pessoas com base em uma parcela que faz essa migração irregular para outros países. Precisamos reconhecer que há, sim, uma comunidade afegã no Brasil. Ela foi criada, existe e tem que ter seus direitos respeitados”.

O que edifica