O melhor da feminilidade
“Eu imagino o que elas pensam quando veem as meninas indo de shortinhos para a Smart Fit”, disse uma voluntária de uma ONG sobre as relações entre mulheres brasileiras e afegãs. Reduzir a questão das mulheres afegãs à religião islâmica seria raso. Sua discrição impede o entendimento do que acontece em suas vidas privadas e mentes. Como investigar o feminino em condições tão extremas?
Entre as segundas e sextas-feiras, em um casarão tombado na Santa Cecília, região central da capital paulista, há dezenas de mulheres reunidas. Elas usam véus, falam línguas que poucos entendem no Brasil. Na hora do almoço, o burburinho em dezenas de idiomas diferentes é alto.
Este lugar é o Bibli-ASPA, um centro cultural dedicado à tradição árabe que tomou para si a missão de ajudar mulheres imigrantes, originárias de vários países, a se estabelecer no Brasil – culturalmente, financeiramente e socialmente. A maior parte das frequentadoras são afegãs.
O centro é presidido por um professor da Universidade de São Paulo, Paulo Daniel Farah, que leciona e pesquisa língua e literatura árabe na universidade.
Durante cinco dias, todas as semanas, mulheres afegãs, sírias, libanesas e de diferentes países do continente africano recebem aulas de português pela manhã, e diferentes atividades à tarde. Lá tomam café da manhã, almoçam e mais um café é servido à tarde.
Para passar o tempo, aulas de confecção de bijuterias, dança, culinária e informática são ministradas por voluntários e instituições parceiras, como o Senac e a Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O aparato todo, claro, não existe só para que elas aprendam a falar português. Há um objetivo maior: oferecer mecanismos para que mulheres imigrantes andem com as próprias pernas em um lugar desconhecido. Com as habilidades adquiridas, podem procurar empregos ou empreender, por exemplo. Fazem amigas e criam uma rede de apoio. Se reconhecem no desconhecido.
Em culturas que seguem formas fundamentalistas do Islã, muitas mulheres se dedicam exclusivamente ao lar e à família. Ainda que passem quase o dia todo em casa, ainda têm sua comunidade. Vizinhas, mães, irmãs, primas, amigas. Se relacionam, se ajudam e estão juntas no cotidiano.
Em um novo país, a tradição pode gerar um isolamento. Sem entender a língua e com oportunidades limitadas de conhecer outras pessoas, acabam desconectadas do mundo ao redor.
Sindy Nobre, vice-presidente da ONG Panagah, conhece bem essa realidade. Quando começaram a receber as mulheres do país, notaram o silêncio delas nas primeiras conversas.
“A primeira reunião, sempre eu ou a Sofia [presidente da Panagah] que fazemos. A gente tenta sempre se dirigir diretamente às mulheres, se não, elas não falam nada. Não vêm às aulas de português porque os maridos não acham necessário que elas aprendam a língua”, disse.
Seria raso dizer que as relações entre homens e mulheres são diferentes no Afeganistão e no Brasil. Também seria fácil atribuir toda essa diferença à religião islâmica, praticada por 99,7%, da população afegã, segundo dados recolhidos pela CIA, agência de inteligência central dos Estados Unidos. Tentaremos entender melhor esta teia de relações.
A lei sagrada
“Sharia” é uma palavra árabe que significa “método”, “caminho”, “procedimento”. Na jurisprudência islâmica, o termo se refere a leis, normas e ordens.
A Sharia, o conjunto de normas que rege o islamismo, é composta por regras e ordens enviadas por Deus a Muhammad – segundo a religião, o último e mais importante dos profetas de Deus viver entre os homens – descritas no Alcorão.
A isso, soma-se a Sunnah, a tradição do profeta. O conjunto de ensinamentos que regeu a vida de Muhammad e, portanto, deve reger a vida dos muçulmanos.
O termo ficou popular depois de alguns grupos fundamentalistas islâmicos usarem-no para definir e justificar as regras que impõem sobre seus membros e afetados. É o caso do Talibã.
O sheik – líder religioso da religião islâmica – Ali Momade, da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil, chama a atenção para a possibilidade de diferentes interpretações dos escritos.
Cada corrente da religião tem a sua própria interpretação, e alguns grupos acrescentam regras que não estão explícitas nos textos.
No que tange os direitos e deveres das mulheres na doutrina, Momade afirma que há uma confusão entre o que é estabelecido pelo Islã e por questões culturais das comunidades – como cada sociedade de maioria muçulmana enxerga a posição da mulher dentro dela.
Segundo ele, as mulheres muçulmanas têm os mesmos deveres dos homens muçulmanos: precisam rezar diariamente, jejuar no mês reservado, fazer caridade.
Uma das obrigações de todos os muçulmanos é estudar, no sentido amplo da palavra, não necessariamente em um âmbito acadêmico.
“Em uma assembleia, o profeta falou, a busca do conhecimento, da ciência, da sabedoria, da educação, é obrigatória para o homem e para a mulher”, disse. “Não podem dizer que mulheres não podem estudar por causa do Islã.”
A mulher tem o direito de trabalhar, se assim quiser. Se ela estiver casada, a lei islâmica diz que o marido tem a obrigação de ser o provedor – papel que Momade define como aquele que deve proteger, cuidar, trazer mantimentos e a manutenção do que a casa precisa. Isso não proíbe a esposa de ir atrás dos seus próprios rendimentos, mas determina a ordem de prioridade nas decisões e nas provisões.
O véu, tecnicamente, é obrigatório. Na religião, é encarado como uma proteção que a mulher impõe a si mesma, em respeito à modéstia praticada na religião. Em países onde não há controle político sobre o assunto, ela escolhe se quer ou não usá-lo – sem adentrar as questões de pressões familiares ou comunitárias.
Todos os países têm uma religião dominante, que tinge aspectos do convívio social, do campo político, econômico e cultural.
“Hoje em dia não existe nenhum país do mundo que siga integralmente aquilo que a Bíblia estabelece. Da mesma forma que você não tem no mundo um país muçulmano que segue integralmente aquilo que o Corão também estabelece”, diz o sheik.
O que se tem em sociedades islâmicas é uma mistura entre as leis religiosas e aquilo que a constituição ou a própria sociedade acredita serem as normas e leis que permitem o convívio dentro das diferenças.
“Existe respeito aos ensinamentos de Muhammad e existem as leis culturais que existem há milhares de anos. Se você não integrar uma parte desses costumes, você rompe com a cultura e vai se colocar em choque com forças locais que reforçam isso”, diz sobre sua visão da mistura entre lei sagrada e lei secular.
O caso do Afeganistão é ainda mais complicado. “O Afeganistão tem a sua própria cultura. Não podemos vincular tudo o que acontece lá à religião islâmica. São dinâmicas sociais conflituosas entre etnias, grupos e conflitos milenares, que também se refletem no âmbito religioso”.
Um mundo
de homens
“O Afeganistão é uma prisão para mulheres”, escreveu em um aplicativo de tradução para o português uma das refugiadas entrevistadas pela reportagem, que preferiu não se identificar – situação que se repetirá ao longo deste texto. Muitas têm medo de sofrer repressão da comunidade afegã, ainda que vivam no Brasil.
O cerceamento dos direitos das mulheres exercido pelo Talibã é destaque na mídia internacional desde a primeira vez que o grupo tomou o poder no Afeganistão, entre 1996 e 2001.
A cultura afegã, mesmo antes da imposição política, tem um tratamento diferente do que é considerado almejável no Ocidente com as mulheres.
Mais conservadora e religiosa. Elas, em geral, são orientadas a manter a discrição nas vestimentas, costumes, vida amorosa e outras áreas. Aconselha-se o casamento com um homem e assumir um estilo de vida doméstico.
Sem o Talibã no poder, essa é uma imposição social – que muitas mulheres escolhiam se opor. Com o grupo no poder, contrariá-las pode ser um atentado contra a própria vida.
Promessas…
Em agosto de 2021, quando a ocupação americana no território afegão acabou e o Talibã assumiu o controle de Cabul, o grupo prometeu que os avanços conquistados nos direitos das mulheres nos anos anteriores não seriam desfeitos.
Com alguma desconfiança, a comunidade internacional aceitou a sinalização de que o grupo faria um governo mais moderado do que o anterior.
“O povo do Afeganistão continuará tendo ensino superior de acordo com as regras da sharia [lei islâmica], que proíbe classes mistas”, afirmou o ministro do Ensino Superior do Talibã, Abdul Baqi Haqqani, em uma assembleia com membros do alto escalão do grupo em 29 de agosto de 2021, segundo reportagem da Folha de S.Paulo.
…quebradas
Os céticos estavam certos. Não demorou muito para que os direitos das mulheres voltassem a ser podados, um a um, sob o Talibã.
No início de 2022, as mulheres foram proibidas de frequentar as salas de aula acima do sexto ano do ensino fundamental. A presença delas foi vetada na volta às aulas em março, “até a segunda ordem”. A pausa serviria para adaptar as escolas e as universidades à lei islâmica interpretada pelo Talibã.
Segundo relatos de refugiadas afegãs à reportagem, suas compatriotas estão proibidas de frequentar as escolas e universidades, em qualquer idade.
Não podem dirigir, não podem se divorciar, não podem trabalhar em diversos setores da economia. Não podem “se misturar” com homens que não sejam de suas famílias.
Elas também relatam que mulheres não podem andar sozinhas nas ruas, ou seja, desacompanhadas de seus maridos ou pais. Mais recentemente, houve a imposição do silêncio – suas vozes não podem ser ouvidas nas ruas.
Todas essas regras estão dispostas em um documento de 114 páginas e 35 artigos, a declaração formal da conduta do Talibã depois da retomada.
A restrição à vestimenta das mulheres é a mais conhecida internacionalmente. As mulheres muçulmanas são estereotipicamente reconhecidas pela modéstia na hora de se vestir: cobrem os braços, as pernas e nada de decote. E, claro, o lenço – chamado hijab – sobre os cabelos.
Em alguns outros países de maioria islâmica, o uso do lenço é mais flexível. A própria mulher escolhe, com base na sua crença religiosa, se fará uso da peça ou não.
No Afeganistão, fora do regime fundamentalista, elas costumam usar o hijab de forma mais frouxa que em algumas outras culturas – mostram o pescoço, as orelhas e a parte da frente do cabelo. Um exemplo famoso de como elas colocam a peça é a ativista paquistanesa Malala Yousafzai.
Em algumas regiões do Afeganistão, o Talibã obriga o uso da burka. Existem inúmeras diferenças nas vestimentas femininas islâmicas, nem todas chamadas burka, como muitos associam no Brasil. A burka é a vestimenta mais reservada: cobre cabelos, colo, braços, pernas e o rosto, deixando apenas os olhos expostos através de uma rede.
Não dá para dizer que o Afeganistão era um país liberal antes da tomada do Talibã. Os talibãs, no entanto, acabam levando esses ideais ao extremo, transformando a vida no país em uma prova para alguns grupos.
No país tropical
“Eu imagino o que elas pensam quando veem as meninas de shortinhos indo para a SmartFit”, disse uma das voluntárias do Bibli-ASPA, sobre as afegãs que frequentam o centro na Santa Cecília.
Não é necessário recorrer a estereótipos sobre mulheres brasileiras e sobre mulheres afegãs para entender que há um choque de culturas considerável entre elas quando se trata da liberdade do corpo e da sensualidade.
A discrição das mulheres afegãs conflita com a abertura que é comum entre brasileiros: é normal ser tocado, falar alto ou convidar pessoas para uma visita em uma interação comum por aqui – coisa impensável em conversas entre gêneros opostos no Afeganistão.
O isolamento complicou a produção desta reportagem. Mesmo em ambientes totalmente femininos, as mulheres afegãs não se abrem com facilidade. Não falam muito sobre si, ainda que perguntadas diretamente. Seja por falta de costume, por medo de revelar algo que possa comprometê-las com a comunidade, ou por timidez, elas resistem a entrevistas.
Mesmo as voluntárias e funcionárias de entidades que trabalham com refúgio relatam essa dificuldade: “ficamos sabendo o que acontece com elas às vezes por perguntas que fazem, atitudes que elas tomam e nós percebemos que há algo por trás”, disse Cássia, que trabalha no Bibli-ASPA ajudando no recolhimento de doações por notas fiscais.
É assim que os depoimentos dessa matéria foram recolhidos. Através da vivência de mulheres que trabalham ajudando mulheres afegãs, e suas percepções durante esse período.
Ser muçulmano e viver em um país de maioria cristã é mais um dos desafios que as mulheres afegãs enfrentam na chegada ao Brasil. Em todos os países, a prática da religião com mais adeptos é facilitada. É muito mais fácil encontrar uma igreja no Brasil do que uma mesquita. A escassez de locais onde é possível comprar um véu, fazer as orações exigidas e alimentar-se da forma que manda a doutrina, dificulta a adaptação.
Primeiros contatos
Como mencionado anteriormente, Sindy e Sofia Nobre fazem reuniões com as famílias afegãs quando elas chegam na ONG, que funciona entre Jundiaí e Campo Limpo Paulista, no interior de São Paulo.
Nesses primeiros momentos, duas coisas precisam ser estabelecidas: que as duas principais autoridades da ONG são mulheres, sendo necessário respeitá-las como tal, e que os direitos das mulheres são diferentes no Brasil.
“Eu explico para elas que eu trabalho aqui no Brasil para compor a renda da minha família. Aqui a gente pode e gosta de trabalhar – porque lá existe uma crença de que as mulheres que trabalham o fazem porque casaram mal, com um homem que não consegue sustentá-las”, disse Sindy Nobre.
A advogada complementa: “A gente fala muito da delegacia da mulher, de que elas podem recorrer à justiça caso sofram alguma violência. E algumas riem, sabe? Como se fosse a coisa mais impossível de acontecer.”
Segundo ela, poucas afegãs são abertas a falar sobre questões de gênero em um primeiro momento. O assunto é inserido em outras pautas, para que elas não fujam das informações.
Ela exemplifica: a cada quinze dias, há palestras sobre assuntos úteis para o cotidiano de refugiados no Brasil. Caso o nome do seminário seja “Violência contra a Mulher”, elas não vem. Comparecem a palestras sobre nutrição infantil, por exemplo. E dentro desse tema, trazem informações sobre a busca pela equidade de gênero por aqui.
“Falamos coisas como ‘aqui você pode ir ao supermercado sozinha. O dinheiro não é só do seu marido, é seu também’”, disse.
“Fazemos isso porque elas têm que saber que também podem opinar. Já tivemos histórias de maridos que queriam ir para outro país e estavam juntando dinheiro. Para isso, alimentavam a eles e os filhos, mas deixavam as mulheres sem comida”, relata.
A ONG tem um mediador cultural. Said faz o papel de conversar com os imigrantes em sua língua materna e ajuda os voluntários brasileiros a fazer as interações necessárias. Com o tempo, perceberam que ter apenas um homem fazendo esse papel estava complicando a criação de relações com as mulheres. Daí veio a ideia de encontrar uma mediadora para melhorar essas interações.
“Começamos a perceber que estavam violando os direitos das mulheres, e às vezes elas nem sabiam que o que elas passavam era uma violação”, explica Nobre. “Estou apanhando, estou passando fome, o dinheiro que vem para nossa família ele manda para o Afeganistão”, são exemplos do que já ouviram nesse período. “Já tivemos dois divórcios na ONG”.
Divórcio é uma opção na lei islâmica, mas não na sociedade afegã. A mulher, quando casa, deixa de ser do pai, e passa a ser do marido. Quando se divorcia, o pai pode não aceitá-la de volta na família, o que a deixa sozinha em um mundo em que só é possível viver acompanhada de um homem. Os filhos, via de regra, ficam com a família do pai em uma separação.
“Como assim meus filhos ficam comigo? Como assim metade dos bens é minha? São algumas perguntas que eu já ouvi de afegãs”, detalha Nobre. “Tem que ter todo um jogo de cintura para falar sobre isso. Para algumas, parece ofensivo. Dizem ‘quem é você para falar da minha casa? Da minha família?’”.
De canto de ouvido
As histórias vêm assim. Poucas vezes em um relato direto.
Uma das voluntárias do Bibli-ASPA lembra de uma pergunta que recebeu. Há algumas semanas, observava a mãe de uma das famílias afegãs que frequentava a casa. Uma menina jovem, que já tinha alguns filhos a tiracolo. Se queixava do cansaço de cuidar de muitas crianças em casa, da falta de dinheiro e de tempo.
Certo dia, perguntou à voluntária onde ela poderia fazer um aborto no Brasil. Ao responder que o procedimento é ilegal no país, recebeu o silêncio como resposta – e nenhuma outra pergunta veio.
Ana Paula Oliveira, da Afghan Refugee Rescue Organization, a ARRO, lembra de um caso que chegou a ela – uma menina que veio ao Brasil depois de ser vendida em casamento para outra família no Afeganistão. Usando o dinheiro que recebeu pela “venda” em matrimônio, comprou uma passagem para o Brasil e decidiu se virar por aqui. Nessa, o casamento foi cancelado e ela, foragida.
Oliveira relata dificuldades que mulheres que chegaram no Brasil “sozinhas” – ou seja, sem pais ou maridos – enfrentam na comunidade, mesmo longe da terra natal. Ainda que em solo brasileiro, são mal vistas e excluídas por membros mais conservadores.
Algumas vezes se dizem primas ou sobrinhas de pessoas que conhecem na viagem, para amenizar a situação.
É preciso
dar um jeito
É difícil medir quais lentes usar para tratar desse assunto. Como saber se está sendo complacente com uma opressão ou está interferindo em um aspecto cultural na vida de alguém? É uma pergunta para a qual nenhuma das ativistas entrevistadas tinha uma resposta.
Para chegar mais perto de uma boa explicação, é preciso despir-se de estereótipos. Entre as mulheres afegãs há profissionais de diversas áreas, mulheres que decidiram não se casar e aquelas que procuram um novo caminho para si no Brasil.
Antes das restrições do Talibã, era possível que mulheres se graduassem em universidades, por exemplo. Ainda que conservadora, a sociedade afegã acomoda existências femininas fora do que o fundamentalismo prega.
É o caso de Shogofa Fahramand. Formada em Direito no Afeganistão, exercia a profissão no país.
Uma causa que admira é a luta pelos direitos e a libertação das mulheres por lá. Fazia parte de coletivos e grupos de estudo sobre opressões. Quando o Talibã voltou ao poder, quis fugir.
O jeito foi o mesmo encontrado por muitos ativistas pelos direitos humanos do país: o visto humanitário brasileiro. Veio “sozinha”: deixou os pais e o marido na Ásia. Chegando aqui em 2022, encontrou um primo que já havia chegado. Juntos, passaram por dois abrigos.
Ela visitava o aeroporto para ajudar quem estava morando por lá com a tradução. Apesar de não falar o português naquela época, falava inglês e usava o tradutor para ajudar no intercâmbio entre o persa e a língua portuguesa.
Não conseguiu se manter longe do ativismo. Conheceu outros afegãos nessas viagens ao aeroporto, e juntos fundaram a Afghan Refugee Rescue Organization (ARRO), que hoje tocam com a ajuda de uma única brasileira no conselho, Ana Paula Oliveira.
No âmbito público, ela luta pelos direitos dos imigrantes no Brasil. Foi delegada na 2ª Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, a Comigrar, representando as mulheres afegãs refugiadas.
Ainda titubeia no português, mas não falha ao expressar o que pensa. “Esse ano foi difícil para as aulas de português. Só consegui fazer por dois meses, muitos compromissos da ONG”, disse. “Eu não tenho agenda para isso”. Diz que enquanto esteve aqui, só conheceu pessoas boas.
O cotidiano é realmente agitado: por falar português e entender sobre as leis, acaba se tornando porta-voz da ONG em muitos eventos. Reúne-se com líderes de entidades, como o Acnur, a OAB, entre outras. Trabalha em um dos abrigos para imigrantes afegãos em Guarulhos, fazendo plantões para ajudá-los no que precisam. Vai atrás de vistos, cestas básicas, mutirões de abrigamento, e tudo o que envolve o apoio ao refúgio.
“Aceitei o Brasil como meu segundo país. Quero dar os melhores serviços aos imigrantes”, afirma.
Entre as brigas que comprou aqui, a educação para imigrantes é uma que lhe é cara. Sabe a dificuldade que as meninas enfrentam para estudar no Afeganistão, e por isso quer facilitar a vida delas aqui.
Como costuma acontecer, as causas que assumimos do lado de fora do corpo, são as mesmas que nos afetam do lado de dentro. Shogofa sente falta do marido e dos pais, sente falta de tudo no Afeganistão. Briga pelo retorno do visto humanitário porque depende dele para estar com quem mais ama de novo.
Os familiares mais próximos ainda estão no Irã e aguardam resoluções do governo brasileiro para conseguir ajudá-la a construir a vida que sonha no Brasil. Tem sido uma batalha interna difícil, relata.
“Os dias são bons, mas as noites…eu choro muito. Enquanto minha mãe e meu marido não estiverem aqui, não consigo dizer que eu moro aqui. São dois anos em que eu não olhei para o rosto da minha mãe”.
Quanto à vida profissional que assume no Brasil, ela quer mais. Ainda não consegue atuar como advogada, pois não encontrou meios de revalidar seu diploma e poder entrar na OAB sem refazer toda a graduação de Direito em uma universidade brasileira. Sente que está fazendo muito menos do que pode, uma vez que poderia representar judicialmente os refugiados e suas demandas.
“Eu quero trabalhar com a mídia. Tenho muitos documentos sobre as mulheres no Afeganistão que precisam virar vídeos. Quero divulgar o que está acontecendo no Afeganistão”.
Daqui, se atualiza do que acontece lá. Se frustra com cada novo direito caçado, é informada das opressões que suas colegas de movimento sofrem. Enquanto isso, tenta dar um jeito.
Quando perguntada sobre os shortinhos que mulheres brasileiras usam para ir à academia se exercitar, Shogofa responde: “já me acostumei a vê-las. E aqui faz muito calor”.
Roupa que
não serve mais
“Vivi em um mundo de homens e guardei em mim o melhor da minha feminilidade”, escreveu Simone de Beauvoir, há quase cem anos.
Em 2024, mulheres que sobreviviam sob possivelmente o regime mais hostil a mulheres no planeta, vivem. No Bibli-ASPA, comem, conversam, aprendem e trocam experiências. Criam uma comunidade feminina, uma rede de apoio. Conhecem realidades diferentes e semelhantes.