Portal Khaneh

O que edifica

Entre setembro de 2021 e dezembro de 2023, foram registradas 2.588 admissões e 1.751 demissões de refugiados afegãos em vagas formais de trabalho no Brasil. O saldo de imigrantes trabalhando formalmente ainda é baixo, devido a uma série de barreiras para a inclusão. Os obstáculos são impostos pelos dois lados da operação: empregadores que não oferecem oportunidades e imigrantes insatisfeitos com as vagas que encontram.

Trabalho, centro da vida moderna. Se no Império Romano, Sêneca dizia que o trabalho era o sustento das mentes nobres, em 2024 a obrigação laboral é uma cortesia estendida a todos.

Não seria diferente para quem procura refúgio aqui: para a maioria, um emprego estável é a espinha dorsal da nova vida no Brasil. Um salário regular significa moradia, liberdade na alimentação e no lazer, e a possibilidade de criar projetos para o futuro – coisa que parece impossível para muitas pessoas em situação de refúgio. Sobretudo quem, há poucos meses, dormiam no saguão do aeroporto de Guarulhos.

A falta de um emprego com perspectiva de futuro rouba aquilo que nos move: a liberdade de almejar, aspirar alguma coisa. Trabalhamos porque queremos fazer uma viagem dos sonhos daqui a 10 anos, ou porque queremos apenas ter arroz na mesa amanhã. Vale tudo.

Encontrar a estabilidade no trabalho tem sido uma tarefa difícil para os afegãos no Brasil.

 

Espremendo
os números

O último informe sobre o mercado de trabalho formal para pessoas afegãs refugiadas no Brasil traz dados colhidos entre setembro de 2021 (início da concessão de vistos humanitários para refúgio de afegãos no Brasil) e dezembro de 2023. O levantamento foi realizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur, usando dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Caged.

Os números nos ajudam a entender um pouco melhor quem são nossos novos vizinhos, e alguns elementos da sua cultura.

A pesquisa aponta que o saldo de contratações de refugiados afegãos em empregos formais no Brasil no período foi de 837 pessoas. Entre as datas, foram registradas 2.588 admissões e 1.751 desligamentos.

O saldo de pessoas que permaneceram nas vagas não é grande: o número de demissões caminha próximo ao de admissões. Essa é uma queixa que aparece nos depoimentos daqueles que primeiro abriram empregos para essas pessoas: muitas deixavam os postos rapidamente.

Os conflitos culturais, como é comum quando falamos de refúgio, roubam a cena nesse assunto. As leis trabalhistas do Brasil são muito mais abrangentes do que as de países como o Afeganistão, Irã, ou mesmo dos Estados Unidos, que muitas vezes são usadas como base de comparação para essas populações.

Como já discutimos em outras reportagens desse portal, é difícil obter dados oficiais sobre o Afeganistão, uma vez que o país passou por sucessivas mudanças de regime nas últimas décadas. Desde 2021, quando o grupo fundamentalista islâmico Talibã voltou ao poder total no país, as leis estão em constante reformulação.

Na ausência de uma legislação trabalhista afegã estável, usaremos as leis do Irã – país vizinho que recebe muitos afegãos – como exemplo da diferença cultural entre brasileiros e persas quando falamos de serviço.

Grosso modo, o Código do Trabalho do Irã estabelece que um contrato de emprego pode ser firmado de forma escrita ou oral, e ambas as partes podem encerrar a relação empregatícia sem aviso prévio e sem a obrigação de pagar compensações.

Muito diferente da legislação brasileira, que exige documentos formais, avisos prévios e várias compensações monetárias em caso de demissão sem justa causa.

A sociedade chega primeiro, e o Direito vem a reboque. O que queremos dizer com isso é: culturalmente, as relações de trabalho são mais maleáveis na cultura persa do que na brasileira. E o efeito prático disso é que alguns empregadores brasileiros foram pegos de surpresa com pedidos de demissão e sumiços de trabalhadores afegãos refugiados.

Por outro lado, os imigrantes não estão acostumados a estarem presos às formalidades de uma CLT (Consolidação das Leis do Trabalho, o formato mais comum de contrato de trabalho). Trocar de emprego deveria ser uma operação mais simples na visão de muitos.

Ana Paula Oliveira, vice-presidente da Afghanistan Refugee Rescue Organization (ARRO) e única brasileira a compor o conselho da ONG que apoia a adaptação de afegãos no Brasil, relembra algumas saias justas que passou tentando alocar imigrantes em vagas.

“Às vezes a gente recebe algumas vagas, e então vamos atrás. Acompanhamos a entrevista, intermediamos, explicamos como funciona para os brasileiros e para os afegãos, e depois de algum tempo alguns simplesmente vão embora – e você acaba perdendo uma ponte com um empregador que estava disponível para ajudar”, relata.

Ela destaca outra diferença cultural que entra na pauta: no Irã, no Afeganistão e nos Estados Unidos, é mais comum que os trabalhadores recebam os salários por hora trabalhada, ao fim de cada semana. Alguns imigrantes veem menos vantagens em um emprego formal, que só trará lucros ao fim de cada mês, em comparação com vagas informais que tragam remunerações mais frequentes, ainda que sem garantia de perenidade.

A solução encontrada pela ARRO e por outras ONGs que atuam com a população é explicar, da forma mais minuciosa possível, a seriedade de conquistar as vagas CLT por aqui: vantagens, desvantagens, mágoas que podem ficar após uma demissão repentina e tudo mais.

Que não fique a impressão ao leitor de que os afegãos não querem trabalhar por aqui. Oliveira deixa claro que muitos conquistaram vagas e querem construir carreiras no Brasil. Outros continuam a procura da melhor oportunidade, que se encaixe com suas metas para a vida no nosso continente: é uma questão de alinhamento de expectativas.

É difícil encontrar empregadores que estejam dispostos a contratar imigrantes, principalmente aqueles que falam línguas muito distantes do português. Ainda mais difícil é encontrar empregadores que ofereçam vagas com perfil de qualificação alto para estes imigrantes. Também por isso, ativistas da causa evitam queimar pontes com aqueles que estão dispostos a contratá-los.

Qualificação e
empregabilidade

A maior parte dos contratados são jovens adultos, entre 18 e 29 anos de idade (35,5% do total) e homens (66,9% do total) – o mesmo perfil da maior parte dos imigrantes que chegaram desde a abertura do visto humanitário.

O perfil educacional da maioria dos contratados é qualificado: 1.934 tinham o Ensino Médio completo e 209 tinham o Ensino Superior completo ou pós-graduações. A média salarial do segundo grupo no Brasil é de R$ 2.939,00 – 58,57% menor que a de um brasileiro que tem a mesma qualificação.

As Estatísticas do Cadastro Central de Empresas (CEMPRE) referentes ao ano de 2022, divulgadas em junho de 2024, mostram que um trabalhador brasileiro com o mesmo perfil educacional recebe cerca de R$ 7.094,17.

A discrepância é uma frustração para a comunidade afegã que reside no Brasil. Muitos trabalhadores que tinham remuneração e reconhecimento maiores no país de origem almejam voltar ao mesmo padrão de vida, mas não conseguem angariar posições de destaque.

É o caso de Shogofa Farahmand, que atuava como advogada no Afeganistão, mas não pode exercer a formação por aqui. Os obstáculos são óbvios neste caso: as legislações díspares e a língua são dois grandes, para começo de conversa.

Farahmand entende que não seria possível voltar aos tribunais imediatamente, mas almeja ao menos a chance de revalidar seu diploma e ter sua formação reconhecida por aqui. Oliveira, da ARRO, e a afegã, que também faz parte do conselho da ONG, tentam encontrar uma solução para o impasse que não envolva recomeçar a graduação em São Paulo.

Ela também se queixa da desconfiança dos empregadores brasileiros em relação à sua capacitação: muitos acreditam que as instituições de ensino no país natal da advogada não têm o nível de qualidade na formação do que eles almejam em um funcionário. Ela acredita que essa barreira aparece devido ao desconhecimento dos brasileiros sobre o Afeganistão e a ausência de vontade em buscar as ementas dos cursos por lá, por exemplo.

Raihana Roshannia enfrenta um problema semelhante: médica, tenta revalidar o seu diploma para exercer as funções clínicas no Brasil.

Para que um médico formado no exterior possa atender no Brasil, é necessário que ele seja aprovado no Revalida – prova que tem fama de complexa mesmo entre os brasileiros.

Aqui, o principal empecilho é a língua. Prestar uma prova de conhecimentos técnicos em um idioma do qual ainda não se tem o total domínio é um desafio dobrado. Ativistas que atuam no suporte a vítimas de migrações forçadas, como Oliveira, defendem que um processo mais simples de revalidação de formação ou requalificação do profissional em situação de refúgio seria um próximo passo importante para a legislação brasileira no assunto.

A maioria dos refugiados afegãos contratados, segundo o mesmo levantamento do Acnur, atuam na área de serviços: operadores do comércio em lojas e mercados e auxiliares em serviços de alimentação são as ocupações mais comuns. Ainda, auxiliares administrativos e serviços em manutenção de edificações compõem a lista.

Seria impossível (e irresponsável) cravar que todos os afegãos em situação de refúgio no Brasil são profissionais qualificados que tinham uma vida abastada nos lares originais. Entretanto, há aqueles que tiveram essa oportunidade.

Eliza Donda, advogada que atua em causas de migração e representa legalmente a Missão Paz, fundação católica sem fins lucrativos de apoio ao imigrante, ajuda a explicar como esse cenário foi construído.

Migrações, incluindo as forçadas e em massa, acontecem em fluxos. Primeiro, saem aqueles que têm melhores condições financeiras, os documentados (que têm passaporte, por exemplo) e os que moram perto das fronteiras ou de cidades com possibilidade de evacuação facilitada (tal como as que têm aeroportos internacionais).

A travessia Afeganistão-Brasil é longa e cara. Os refugiados chegam ao nosso país sobretudo pela via aérea (vide o acúmulo de imigrantes no aeroporto de Guarulhos), e para pagar essa passagem, é necessário ter algum dinheiro em caixa, ou algum crédito para tomar. Para Donda, só é possível interpretar esse fluxo migratório com a consciência de que esta não é uma travessia fácil de fazer ilegalmente e despido de preconceitos sobre a origem de pessoas refugiadas. É possível estar refugiado e enfrentar barreiras no mercado de trabalho no Brasil, e ter uma condição financeira confortável no país de origem.

Baixa remuneração

A jornada provável de pessoas em situação de refúgio após a chegada em qualquer país é semelhante: começar em empregos de baixa remuneração e que exigem menos qualificação, e alcançar posições com mais reconhecimento profissional com o passar dos anos. Falando a língua com maior fluidez e mais acostumado ao regime de trabalho local, o imigrante pode pleitear vagas melhores.

Os afegãos sabem disso, e, em geral, têm expectativas alinhadas à realidade, na visão de Ana Paula Oliveira, vice-presidente da ARRO. As barreiras enfrentadas na adaptação e na evolução profissional, contudo, vão exaurindo a paciência de alguns.

A situação empregatícia serviu de combustível para muitos afegãos deixarem o Brasil em busca de remunerações e condições melhores em países do Norte Global. Discutimos amplamente a fuga de afegãos para os EUA e países da Europa em outra reportagem do portal, mas traçamos um rascunho aqui para materializar o problema.

A linha de pensamento de alguns imigrantes é algo como: se trabalho em vagas de baixa qualificação e baixa remuneração aqui, então que eu faça o mesmo nos Estados Unidos, ganhando em dólar. Uma vez que o processo de adaptação é similar em quase todos os destinos, o Brasil deixa de ser a primeira opção.

Sindy Nobre, vice-presidente da Panagah, ONG especializada na recepção da população afegã no Brasil, relata já ter tido dificuldades em alocar imigrantes em postos de trabalho devido aos salários pequenos e à resistência em assumir cargos que exigem pouca qualificação profissional.

“Tentamos conciliar as intenções. Explicamos que o Brasil é um país do Sul Global que passa por dificuldades próprias, e que provavelmente não encontrarão aqui o mesmo emprego que tinham lá. Isso para que não tenhamos situações de recusa de empregos por causa de altas expectativas sobre o futuro profissional em um primeiro momento”, explica.

Português

Viver em um novo idioma não é fácil. Acrescente a essa equação um alfabeto completamente diferente e um nível de escolaridade baixo no país de origem. O resultado é uma eterna batalha pela inclusão.

Como conquistar uma ocupação especializada sem entender as idiossincrasias da língua portuguesa? Em geral, não se conquista.

Emran Ahmad Niazi, afegão refugiado no Brasil, declara: a melhor coisa que você pode fazer para um imigrante é ensiná-lo o português. A língua traz autonomia e independência. Renova o senso de comunidade e estimula a criação de uma rede de apoio: amigos, vizinhos, a familiaridade recuperada.

Os que não aprendem a língua, pulam de emprego em emprego. Niazi enfatiza que sem o empenho de ensinar o idioma, o Brasil perde oportunidades de usar a capacidade intelectual dos imigrantes.

A dificuldade profissional gera ócio e desalento. “A gente acorda, come e dorme. Não faz nada com o tempo”.

Quem sabe, faz

Esmatullah Mohsini contou com a ajuda de dois brasileiros, Sheila e Charles Chainho para se adaptar ao Brasil. O casal o acolheu em sua casa, ajudou-o a aprender a língua portuguesa e a ganhar confiança na conversa. O carisma e a simpatia vêm do berço, segundo o próprio.

Foi no aeroporto de Guarulhos que Esmatullah conheceu os pais brasileiros – ele mesmo os chama assim, que retribuem nomeando-o filho. Lá, fez amigos e virou Esmat. O nome é resultado da mania paulistana de apelidar a todos.

Esmat, que nasceu no interior do Afeganistão, trabalhava como costureiro com a família em Teerã, capital do Irã. Ao chegar no Brasil, descobriu que a área da confecção oferecia muitos empregos para imigrantes em São Paulo. O único detalhe são as condições de precarização extrema, em regiões como o Brás.

A pequena e recém-formada família teve a ideia de usar a experiência do caçula para abrir um negócio. Onde morava, Esmat cerzia réplicas de bolsas de marcas de luxo, a serem vendidas nos países vizinhos ao Irã.

De cara, Sheila avisou o filho adotivo de que este já era um business saturado por aqui: já existe uma tal de 25 de março que supre essa demanda na capital paulista.

De presente, o afegão recebeu uma máquina de costura da mãe brasileira. Ainda que fosse o modelo errado para costurar bolsas, Esmat diz que foi “o melhor presente que poderia ter ganhado”. Com o novo equipamento, começou a usar todos os tecidos espalhados pela casa para criar os primeiros modelos.

Ele costurava, postava nos stories do Instagram, e recebia elogios de amigos que fez no Brasil e no Afeganistão. “Depois de tanto tempo, de volta atrás da máquina”, foi a legenda da primeira postagem.

Sheila e Charles deram o empurrão que ele precisava para profissionalizar a coisa. Pesquisaram e sugeriram uma linha de bolsas e mochilas com tecidos sustentáveis, tingimentos naturais e sem uso de couro animal. O design foi inspirado por marcas esportivas e de itens de aventura europeias, que encontravam pouco no Brasil.

A Esmat Wear é a junção de todos esses fatores e encontros improváveis.

Funcionamento

Até o momento, Esmat é responsável pela confecção de todas as peças à venda no site da marca. Ele desenhou todos os modelos, e costura cada uma das encomendas.

Na verdade, não dá para dizer que ele desenhou todos os modelos. Sheila relata que nunca viu um croqui de Esmat: ele já aparece com as novas bolsas prontas.

“Ele fala: ‘tenho uma ideia de bolsa’. Alguns dias depois, chega com ela feita. Nunca desenha. Fazemos algumas alterações nesse modelo piloto, mas as criações sempre são espontâneas dele”.

Os pais brasileiros continuam animados em ajudá-lo. “Ele é um costureiro de mão cheia. Tudo onde coloca a mão, dá certo”, gabou-se a mãe.

Futuro

Esmat realizou o sonho de ter a própria marca, mas ainda não está satisfeito. Quer expandir e criar linhas de tênis e roupas.

Sua maior vontade, entretanto, é trazer a família, que ainda mora no Irã, para ajudá-lo no negócio. Tenso com a situação de seu país e a animosidade com o país vizinho, gostaria de ter a família por perto.

Com a última atualização das regras para emissões de vistos humanitários para afegãos, a família brasileira está esperançosa em trazer a família afegã de Esmat para viver na América do Sul.

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