Um visto, duas portarias
É o que bastou para mudar a vida dos afegãos de cabeça para baixo, ao menos duas vezes. Entenda melhor a legislação por trás da possibilidade de refúgio dessa população no Brasil.
As primeiras imagens que vêm à mente de muitos quando falamos sobre imigração e refúgio são impiedosas. Muros forrados por quilômetros de arame farpado, botes precários lotados e travessias por florestas e desertos estão entre elas.
Enquanto essas cenas dominam o Norte Global, o Brasil tomou um caminho diferente. Por aqui, a apelidada “política de portas abertas” permite a entrada de refugiados, e certas vezes, até facilita esse processo.
Um exemplo disso é a comunidade afegã. Com a retomada completa do poder político no Afeganistão pelo Talibã em 15 de agosto de 2021, o Brasil autorizou a emissão de vistos humanitários, facilitando a entrada de pessoas em risco no país, bem como de afegãos que, mesmo estando fora de sua terra natal, enfrentavam ameaças à sua segurança.
A portaria interministerial nº 24, de 3 de setembro de 2021, estabeleceu a criação dos vistos, durante o arrefecimento da pandemia de Covid-19 e um governo de extrema-direita e caráter anti-imigrantes. A aprovação aparentemente improvável é resultado dos esforços de uma comunidade de auxílio aos imigrantes e ativismo pela recepção de pessoas em necessidade de refúgio pujante.
Dissecamos aqui as legislações acerca da migração de afegãos para o Brasil e a atividade de quem quer que as portas continuem abertas para eles.
Lei de
migração
Aprovada em 2017, durante o governo Michel Temer, a Lei de Migração substituiu o Estatuto do Estrangeiro, que até então legislava sobre aqueles que não nasceram no Brasil, mas decidiram construir sua vida aqui.
Ela trouxe mudanças relevantes na assistência ao imigrante e na percepção humanitária deste indivíduo no país – passou a punir racismo, xenofobia, e outras opressões que ele pudesse enfrentar.
A lei, de 24 de maio de 2017, estabelece como princípio a promoção da entrada regular e a regularização daqueles que entraram no território. Ela também assegura a isenção de taxas na emissão da documentação necessária para a entrada legal.
Ela estabelece cinco tipos de visto para permanência no Brasil. São eles:
- De visita;
- Temporário;
- Diplomático;
- Oficial;
- De cortesia.
Entre esses, o mais relevante para quem auxilia vítimas de migrações forçadas é o temporário. Entre as possibilidades dele, está a emissão humanitária, que exige menos documentos e é entregue com mais agilidade do que outras modalidades.
O visto humanitário – ou em termos oficiais, visto temporário para acolhida humanitária – “poderá ser concedido ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma de regulamento” (Capítulo II, Seção II, Subseção IV, Art. 14, § 3º).
A advogada Eliza Donda, que atua na defesa dos interesses de pessoas em refúgio na Missão Paz, organização católica sem fins lucrativos, aponta que o visto humanitário foi estabelecido na emergência humanitária do Afeganistão após manifestações dos envolvidos com a causa do refúgio. Eles fazem as coisas funcionarem “na base da pressão”, segundo ela.
A primeira
portaria
Em 3 de setembro de 2021, menos de um mês após o Talibã tomar Cabul, capital do Afeganistão, foi divulgada a Portaria Interministerial Nº 24. Nela, o Ministério de Relações Exteriores e o Ministério da Justiça e da Segurança Pública concedem visto temporário e autorização de residência para “nacionais afegãos, apátridas e pessoas afetadas pela situação grave ou iminente instabilidade institucional, de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário no Afeganistão”.
Ou seja, afegãos dentro e fora do Afeganistão poderiam tentar a concessão do novo visto em embaixadas brasileiras na região: Teerã (Irã), Islamabad (Paquistão), Ancara (Turquia), Moscou (Rússia), Doha (Catar) e Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos). Pessoas de outras nacionalidades que estivessem sob risco devido à ascensão do Talibã ao poder, também poderiam se candidatar ao benefício.
O documento dispõe que deveria ser dada prioridade a solicitações de grupos mais vulneráveis como mulheres (conhecidamente as vítimas preferenciais de opressões do Talibã), crianças, idosos, pessoas com deficiência e suas famílias.
A vantagem principal do visto humanitário é exigir menos documentos e menos burocracias do que um visto tradicional – um dispositivo de saída rápida para quem está em uma situação emergencial.
Para tirar o visto autorizado pela portaria era necessário apresentar apenas um documento de viagem válido (normalmente, um passaporte), o formulário de citação de visto preenchido, um comprovante de meio de transporte de entrada no território brasileiro (leia-se, uma passagem só de ida para o Brasil), e um atestado de antecedentes criminais. Este último pode ser substituído por uma declaração individual, que caso contenha informações mentirosas, poderia render o cancelamento do benefício ao requerente.
Quem tira o visto tem 180 dias para embarcar para o Brasil e procurar a Polícia Federal, em nome de receber o status de refugiado. A partir de então, começa a correr um prazo de dois anos de autorização de residência no país.
Para quem está vivendo uma situação como as cenas vistas no Afeganistão naquele momento, uma solução rápida e com a menor necessidade de caça de documentos possível, é a ideal, segundo o Defensor Público da União, João Chaves.
Foi por meio desse dispositivo que grande parte da comunidade afegã que hoje vive no Brasil chegou por aqui. Segundo dados do MRE obtidos pela reportagem através da Lei de Acesso à Informação, entre setembro de 2021 e março de 2024, foram emitidos 11 mil vistos humanitários para afegãos usando a portaria.
A medida não dispõe regras para a recepção dos nacionais afegãos que aterrissaram neste país. Não há exigências de comprovação de renda, de hospedagem ou residência no Brasil, ou qualquer vínculo com o país – formato natural de um dispositivo que facilita a fuga de uma situação emergencial.
Falta de preparo
A conquista da possibilidade de vinda ao Brasil não representou o fim da saga. Muito longe disso. No caminho, foram surgindo um, dois, dez, cem problemas…infindáveis obstáculos à acolhida adequada de uma população em situação de refúgio.
O Brasil foi um dos únicos países a abrir as portas para os egressos do Afeganistão. Ou seja, um dos únicos canais de saída – e estreito. Só pode tomar esse caminho quem tem o tal documento de viagem válido e pode pagar uma passagem para o Brasil. O trecho aéreo não é barato – a passagem aérea mais barata de Teerã a Guarulhos custa, em média, R$ 10.500. A viagem dura 27 horas.
Como citado anteriormente, a medida foi aprovada sob pressão. Ou seja, não fazia parte da agenda do governo de Jair Bolsonaro ou das gestões do MRE e do MJ naquele momento garantir uma recepção organizada dessa população.
Os imigrantes foram chegando, e se acumulando no aeroporto de Guarulhos. O português, língua muito distinta do persa, não facilitava a saída do local ou a busca por uma residência melhor. Os detalhes dessa recepção improvisada você lê em outra reportagem do site.
Os abrigos que recebem imigrantes de outros países não eram preparados para a cultura afegã. Na maioria deles, separa-se os homens das mulheres, e estes dividem quartos com colegas em situação semelhante.
Acontece que os afegãos não estão acostumados a separar o núcleo familiar: mulheres têm que estar com os homens da sua família, maridos ou pais, e os parentes permanecem juntos. Ainda, a concepção de núcleo familiar é diferente. Eles consideram tios, sobrinhos, primos e irmãos como parte da família próxima.
Essa matemática resultava em famílias de seis, oito, dez pessoas, que não aceitavam ir para os abrigos para não serem separadas. Preferiam ficar juntas no aeroporto, em vez de separadas em quartos estruturados. Foram para os abrigos tradicionais, em um primeiro momento, os homens solteiros, que compuseram boa parte da migração. Também tratamos da moradia e das adaptações das políticas de abrigamento para acomodar a cultura afegã em outra reportagem do portal.
Evasão
As barreiras vão aparecendo no caminho: dificuldade em encontrar emprego, moradia, aprender uma língua desconhecida, adaptar-se à cultura…a lista poderia ter cem linhas.
Tamanho desafio gera desistências. Foi aberto um fluxo de migrantes egressos do Afeganistão que usaram o Brasil como porta de entrada para o Ocidente. Daqui, continuaram a viagem para os Estados Unidos e para a Europa.
Além dos atrativos de países desenvolvidos (segundo a caracterização mais popular) que chamam brasileiros, afegãos, e nacionais de uma miríade de outras nações, há um elemento cultural importante na equação da fuga de afegãos para os EUA. O Afeganistão esteve sob domínio estadunidense por 20 anos antes de 2021. Nesse período, muitos aprenderam a falar inglês e se acostumaram com elementos da cultura norte-americana, e procuram o conforto de alguma familiaridade. Mais detalhes sobre, em outra pauta.
Esse é um fluxo difícil de medir em números. Muitos afegãos fizeram a travessia Brasil-EUA ou Brasil-Europa de forma ilegal. Para compreender a magnitude do fenômeno, podemos analisar dados como a emissão de vistos versus os pedidos de residência permanente no Brasil após os dois anos de vencimento da permissão de residência temporária.
Como já dito, foram 11 mil vistos humanitários registrados nas unidades consulares brasileiras. Até março de 2024, foram apenas 847 pedidos de residência permanente no Brasil protocolados por afegãos. Há outras variáveis que atuam neste número: pessoas que tiraram o visto, mas não vieram; pessoas que ainda não têm o visto vencido, e portanto não pediram a permanência; etc. Mas, a discrepância entre as duas quantidades ainda chama a atenção de quem observa os fluxos migratórios.
A dificuldade no acolhimento, a fuga do país, e para alguns, a má vontade do Poder em acolher os imigrantes, resultaram no bloqueio temporário da emissão de vistos: a infame Portaria 42.
A segunda portaria
Poucos dias depois do aniversário de dois anos da adoção dos vistos humanitários para afegãos, o cenário mudou – pegando de surpresa famílias, ativistas e outros envolvidos na causa.
No dia 22 de setembro de 2023, foi publicada a Portaria Interministerial nº 42, que se tornaria o maior problema na vida de centenas de refugiados afegãos no Brasil nos próximos meses.
Ao determinar uma série de regras para a emissão do visto humanitário – que até então, aos trancos e barrancos, corria bem –,a portaria teve como efeito a interrupção da emissão desses documentos nas embaixadas.
Na redação da portaria, não está determinada com todas as letras a pausa na expedição das autorizações de viagem. Entretanto, ela condiciona a liberação dos vistos à publicação de um edital. só foi promulgado 11 meses depois que a portaria 42 entrou em vigor. Você pode lê-lo na íntegra aqui.
Como resultado, as emissões de vistos e a vinda de afegãos para o Brasil está praticamente interrompida desde setembro de 2023.
Há várias formas de enxergar a medida. As visões divergem dentro da comunidade de acolhida humanitária de refugiados.
Possíveis motivações
Como discutido anteriormente, a recepção de afegãos no Brasil tem seus tropeços. O acúmulo de pessoas no aeroporto, em situação insalubre, gerou surtos de doenças e dificuldades na documentação.
A evasão de migrantes em direção aos Estados Unidos e à Europa, muitas vezes de forma ilegal, gerou problemas legais e deixou um gosto amargo na boca de alguns brasileiros que se dispuseram a acolher nacionais afegãos por aqui.
O defensor público da União, João Chaves, explica que a alta demanda por vistos nas embaixadas se somava à lista de percalços. A quantidade de solicitações e processamento de documentos sobrecarregou as autoridades consulares, que pediram soluções.
Segundo ele, havia a alegação de que a emissão de um visto humanitário demorava de seis a oito meses na embaixada.
Colocar um torniquete no fluxo foi a resposta encontrada pelo Ministério da Justiça (e o Conare dentro dele) e pelo Ministério de Relações Exteriores para mitigar as dificuldades encontradas por imigrantes.
Eles defendem que as condições em que os imigrantes estavam vivendo (como em um acampamento no aeroporto), não poderiam continuar. Na impossibilidade de oferecer condições melhores, o mais adequado seria segurar a porta por um tempo, enquanto outras soluções são criadas.
“A normativa migratória reafirma o compromisso do Estado brasileiro em promover o acolhimento humanitário dos imigrantes afegãos de forma segura, ordenada e regular. A nova política pretende assegurar que, ao chegar no Brasil, os afegãos tenham acolhimento planejado, organizado e digno, de forma a melhor promover a integração local e a dignidade dos beneficiários, com segurança e preparação prévia”, escreveram as pastas em nota conjunta.
Chaves, no entanto, discorda do caminho escolhido pelo MJ e pelo MRE para solucionar as questões impostas pelo acolhimento. Ele afirma que a resposta foi contrária à pleiteada pela Defensoria Pública da União, a DPU, quando começaram os problemas.
“Nós [DPU] fizemos uma recomendação para aumentar a capacidade de vistos. Se você tem um serviço público que tem que atender cem pessoas, mas só tem capacidade de atender cinquenta, então você tem que criar novos mecanismos. Seja aumentando a contratação de pessoal, criando um sistema de entrevistas virtuais, dispensando as entrevistas. Não importa como, atenda cem. Entretanto, o que foi feito foi suspender tudo”, disse à reportagem.
Segundo a advogada Eliza Donda, que cuida das questões legais da casa de acolhimento de migrantes Missão Paz, há uma desconexão entre os órgãos envolvidos na acolhida: tanto entre o MRE e o MJ, quanto entre eles e outras entidades.
Esse desacordo complica a criação de medidas efetivas e ágeis, a exemplo da demora de quase um ano para a publicação do edital anunciado na portaria 42. Donda afirma que há pressão do lado civil para uma organização mais efetiva, mas com poucos resultados.
O Comitê Nacional para Refugiados, o Conare, que está sob o guarda-chuva do Ministério da Justiça, não forneceu explicações para a emissão da portaria.
Labirinto
burocrático
A burocracia alfandegária tornou-se o maior problema para famílias afegãs divididas: um pouco aqui, um pouco na Ásia.
Até que o edital fosse publicado, as ONGs selecionadas e a emissão de vistos retomada, muitos processos foram interrompidos e planos parados na metade.
Muitas famílias de imigrantes – e aqui não falamos somente da população afegã – dividem-se na hora de fazer a mudança. Primeiro, vem os mais jovens ou com mais facilidade para viajar. Instalam-se, fazem algum dinheiro, e então, vem o resto: mulheres, crianças, idosos, todos que ficaram e gostariam de vir em um segundo momento.
Com dois anos da abertura de portas do Brasil para os nacionais afegãos, famílias estavam chegando nesse ponto de inflexão: hora de trazer quem ficou para viver a nova vida que estão conquistando. O fim da aflição.
As expectativas foram quebradas pela nova medida, que praticamente interrompeu o fluxo de vinda. Alguns poucos que já haviam conseguido o visto, mas ainda não tinham acertado os detalhes da viagem, conseguiram embarcar nos últimos meses. O restante ficou à mercê das pastas ministeriais.
Sindy Nobre Santiago, conselheira jurídica da Panahgah, organização especializada na acolhida de afegãos e sediada em Jundiaí (SP), afirma que o fluxo de recepção para a cidade foi interrompido, e cita uma família que terminara a documentação e estava sendo esperada pela ONG.
“Há famílias que estávamos prontos para receber, que já tinham a entrevista [para o processo do visto humanitário] marcada na embaixada de Islamabad, no Paquistão. Essas pessoas ficaram em um limbo”, relatou.
“Eles não podem voltar para o Afeganistão. Venderam tudo o que tinham. No Paquistão não são bem-vindas, estão sempre correndo o risco de serem deportadas. Não podem mais vir para o Brasil, porque fecharam as portas. O fluxo hoje é zero”.
Sem volta
Atravessar as fronteiras do Afeganistão não é uma escolha, e sim uma imposição para certos grupos. Seja pela natureza das profissões que exercem, por um passado onde se envolveram com o ativismo ou com outros regimes que dominaram a política do país, afegãos são ameaçados pelo regime conservador e violento do Talibã. Temer perseguições, violências e homicídios não é exagero.
Outros, ainda que não ocupem as primeiras posições na lista de procurados pelo grupo extremista, não querem viver sob um regime com as imposições recaídas sobre os afegãos desde 2021. A fuga torna-se uma alternativa possível.
O problema: segundo os depoimentos dos afegãos que estão por aqui, voltar para o Afeganistão depois de ter fugido pode ser uma sentença de morte. Os imigrantes são considerados traidores do regime.
O cerco se fecha mais. Os países fronteiriços, sobretudo Paquistão e Irã, são os que mais recebem afegãos – e os que são mais hostis aos vizinhos também. Nas entrevistas feitas ao portal, conflitos entre afegãos e iranianos são uma queixa comum.
Desde relatos de xenofobia nas ruas, bullying nas escolas e proibição de acesso a locais públicos, os afegãos não vivem tranquilos no Irã.
Segundo Esmatullah Mohsini, há padarias em Teerã com placas avisando que ali não se vende pão para afegãos. O alimento é elementar na cultura afegã – consumido em todas as refeições e usado para recolher a comida do prato com as mãos.
Esse relato, como é da natureza das histórias orais, não é verificável.
A legislação e as complicações burocráticas para que afegãos habitem em acordo com a lei no Irã, essas sim, são verificáveis.
Os afegãos considerados refugiados legais no Irã portam o cartão Amayesh, uma espécie de “green card” dos Estados Unidos – permite residir, trabalhar, adquirir posses, etc. no país.
A maior parte dos portadores desse dispositivo legal entraram no Irã até 2007. Depois disso, a obtenção do documento rareou.
A pedra no sapato dos portadores do cartão Amayesh é que ele não é um documento permanente, e precisa ser atualizado vez ou outra. Os prazos variam entre as emissões do cartão. Pouco importa quando você conseguiu a benesse, terá que removê-la em um prazo estipulado pelo governo iraniano em locais definidos previamente.
Um exemplo ajuda a explicar. Em 2021, os portadores do Amayesh tinham um ano até a próxima renovação, seguindo a data de validade impressa no documento. Entretanto, em 2022, foi dada uma janela única de quatro meses para todos que precisavam renovar o cartão pelo próximo ano.
Ou seja, anualmente – ou menos, a depender de quais serão as determinações do governo iraniano naquele ano – os afegãos precisam se dirigir a um centro de renovação, que, geral, estão apenas nas grandes cidades, levar documentos – que muitos não têm ou estão vencidos, uma vez que há problemas de documentação no Afeganistão sob o regime do Talibã – e pagar uma taxa.
Aí talvez esteja o problema central dessa renovação constante: o preço.
Uma tabela divulgada em um estudo sobre a situação dos afegãos no Irã da Agência da União Europeia por Asilo, a EUAA, mostra que os inscritos na renovação 17 do Amayesh, em 2022, pagariam aproximadamente 100 euros por pessoa para obter o documento. O valor por cabeça é menor se a família tiver mais pessoas.
Há relatos de afegãos, que por não conseguirem tirar passaportes no país de origem, acabam comprando documentos falsos para atravessar a fronteira – mais um gasto, e mais um risco.
É o caso da família de Ali Ahmadi, patriarca de mais de 100 anos, que veio com a família para o Brasil. Ele, a esposa de 86, filhos e netos totalizaram uma caravana de 11 pessoas. Tiveram de comprar o documento de viagem, pois obtê-lo no Afeganistão seria demorado e haveria pouca garantia de sucesso no processo. A história foi registrada pela jornalista Flávia Mantovani, em reportagem para a Folha de S.Paulo em setembro de 2022.
Poder ficar no país não significa, entretanto, gozar de todas as possibilidades de um cidadão iraniano. Refugiados documentados com o Amayesh não podem tirar a carteira de habilitação para dirigir veículos no Irã, não podem acessar todos os tipos de emprego, não têm direito a acessar o ensino superior e não podem se movimentar livremente no Irã.
Só é possível atravessar a fronteira entre Irã e Afeganistão de forma legal portando um visto. Existem diferentes tipos de visto, como de praxe: estudo, trabalho, turismo, entre outros.
Ter um visto permite mais oportunidades do que o cartão dos refugiados. O documentado pode acessar a educação superior com um visto de estudo, por exemplo. Mas nada, sobretudo nesta situação, vem sem seu custo.
O mesmo estudo da EUAA levanta dados que indicam que um visto iraniano em abril de 2022 custaria cerca de 130 dólares americanos a um afegão, e teria a duração de três meses. A renovação depende da permissão de autoridades iranianas e do pagamento de outras taxas.
A proximidade terrestre dos dois países, a dificuldade e o preço da documentação levam a um fenômeno quase óbvio: a migração ilegal.
Há muitos afegãos vivendo ilegalmente no Irã. Muitos mesmo. É o caso da família de Mohsini, e de outros personagens dessa reportagem e desse portal – que não citamos a pedido das famílias, que têm medo de retaliações.
Seja entrando ilegalmente via terrestre no Irã, seja entrando legalmente e não pagando as taxas de renovação das documentações, há milhares de histórias similares de afegãos em território iraniano. A Secretaria-Geral da ONU estimava em 2022 que havia 2,6 milhões de nacionais afegãos vivendo clandestinamente no Irã.
Como já explorado anteriormente, a convivência entre afegãos e iranianos é hostil. Os afegãos frequentemente não acessam os melhores empregos ou a melhor educação no país – consequentemente, também não acessam a melhor renda.
Essa animosidade é histórica. Desde brigas por recursos naturais nas fronteiras, a conflitos entre influências nos países (o Afeganistão esteve sob influência dos EUA por muitos anos, notório rival geopolítico do Irã).
Some a isso as tensões que perturbam o Oriente Médio no momento da escrita dessa reportagem. A escalada do conflito entre Irã e Israel, efeito colateral do genocídio que acontece na Palestina, está no radar.
Esse caldeirão de conflitos internos e externos geram uma pressão muito além da atmosférica para os afegãos que vieram ao Brasil sem suas famílias. Os parentes que ficaram no Afeganistão, estão ameaçados pelo autoritarismo do Talibã. Os que estão no Irã estão lidando com a antipatia dos vizinhos, as poucas oportunidades, e para os ilegais, uma possível deportação.
De repente, a portaria 42 fechou as portas para quem esperava a hora de reencontrar os mais próximos.
Uma janela emperrada
Dizem que quando fecha-se uma porta, abre-se uma janela. Neste caso, a saída alternativa não é das mais ágeis.
Há outras formas de afegãos entrarem no Brasil, além do visto humanitário. Dentre eles, há o visto de reunião familiar. Ele serve ao propósito que a nomeia: trazer para perto os parentes mais próximos de quem está por aqui.
O visto humanitário, por ter caráter emergencial, exige poucos documentos e é liberado rapidamente. O de reunião familiar, assim como todos os outros, pode ser mais burocrático e lento.
O cerne do problema que as famílias enfrentam é a documentação. Segundo Eliza Donda, da Missão Paz, há um grave problema de registro no Afeganistão, agravado pelo domínio do Talibã, que não tem destreza nesse tipo de função estatal. Também não há tradição censitária no país, o que dificulta um registro preciso da população.
Para tirar um visto de reunião familiar brasileiro, é necessário ter em mãos:
- Formulário de requerimento do visto preenchido;
- Passaporte com prazo de validade igual ou superior a seis meses e cópia da página de identificação;
- Fotografia tipo passe com menos de seis meses;
- Certidão de nascimento, casamento, união estável ou documento que comprove vínculo com o chamante, emitida há menos de um ano;
- Declaração conjunta, de ambos os cônjuges ou companheiros, sob as penas da lei, a respeito da efetiva união e convivência;
- Certidão negativa de antecedentes criminais emitida pela autoridade competente de cada país de residência do requerente nos últimos 12 meses;
- Comprovantes de residência datados dos últimos 12 meses.
“Experimente pedir para o Talibã emitir a sua certidão de nascimento. Sobretudo se você já fugiu para o Irã. Muitos nem tem esse documento em primeiro lugar”, diz Donda.
O visto de reunião familiar não abrange a extensão do núcleo familiar afegão. Vale lembrar que tios, primos, sobrinhos, são considerados família próxima. O documento só permite que o residente no Brasil chame cônjuges e companheiros, filhos, enteados, pais, avós, netos e irmãos. O restante não entra na lista de chamada.
Muitos imigrantes estão tentando trazer os familiares por meio desse dispositivo, a despeito das complicações. Vamos conhecer um caso emblemático mais adiante.
Silêncio
Depois da divulgação da portaria 42, muitos afegãos deram com a cara na porta na tentativa de vir ao Brasil. Às vezes, literalmente.
Quem foi procurar a embaixada do Brasil em Teerã depois de setembro de 2023 encontrou as portas fechadas e um cartaz na porta dizendo que só conseguiria o visto quem tivesse uma autorização de ONGs no Brasil.
E-mails, telefonemas e visitas presenciais para abordar processos de emissão do visto interrompidos não obtiveram resposta. Questionadas sobre o assunto pela reportagem, as embaixadas brasileiras em Teerã e Islamabad não responderam.
Os defensores públicos federais Eduardo Valadares de Brito e João de Castro Chaves fizeram uma recomendação aos ministros da Justiça e Segurança Pública e Relações Exteriores, Ricardo Lewandowski e Mauro Vieira, respectivamente, pedindo a rediscussão do modelo de patrocínio privado das ONGs que é estabelecido pela portaria. Eles pedem também dispositivos que facilitem que os chamantes afegãos já estabelecidos no Brasil tragam seus parentes – uma mescla dos vistos de reunião familiar e humanitário.
Entre as solicitações, está a “redução do rol de exigências documentais, adaptando-o à realidade da acolhida humanitária”.
A exigência de patrocínio de organizações privadas, ainda que voltadas à ajuda humanitária, para que os imigrantes venham ao Brasil, também é criticada no documento. O modelo de acolhimento imposto pela portaria e suas limitações é discutido em outra pauta deste site. Nessa matéria, também tratamos do novo edital e suas exigências.
A documentação foi assinada em 15 de maio de 2024, e o edital que permite o cumprimento das determinações da portaria, no final de agosto.
19 anos
sem respostas
Em 1995, Aziz Resaie chegou no Brasil. Motivado pela ocupação da União Soviética no Afeganistão, ele escolheu uma rota incomum para quem fugia do país naquele momento. Enquanto a maioria de seus compatriotas escolheu os fronteiriços Irã e Paquistão.
Egresso de Cabul, ele foi um dos primeiros afegãos a receber o status de refugiado no Brasil. Sozinho. Vida diferente da que tinha no país de origem, onde deixou a esposa e o filho.
A esperança, a mesma que embala a jornada de todos os imigrantes, era se ver reunido com os entes queridos, uma vez bem instalado e empregado em terras tupiniquins.
Os sonhos, no entanto, não se realizaram da forma que esperava. Seu Aziz, como é conhecido em sua vizinhança em Guarulhos, onde vive desde que chegou, é cidadão brasileiro – tem CPF, RG e recebe aposentadoria do INSS. Trabalhou nos últimos 19 anos como tapeceiro: produz e renova tapetes artesanalmente. A vida é tranquila, como a de um idoso que vive só.
Isso porque sua família nunca conseguiu vir. E não por falta de tentativas ou convites. Por falta de documentos. O filho, que hoje é casado e tem sua prole, cuida da mãe, esposa de Aziz, no Irã, onde vivem atualmente.
Na companhia de Said , tradutor e intérprete afegão que vive no Brasil há 15 anos, e Ana Cauhy, professora de português brasileira com quem criou uma amizade próxima nos últimos anos, ele contou sua história ao portal em uma terça-feira à tarde.
Ao seu redor, eles se preocupam com a situação de Aziz: idoso, precisa de cada vez mais ajuda. Não pode mais viver só. Precisa de companhia para consultas médicas e tarefas do dia a dia. De lá, o estresse da família é o mesmo.
Foram inúmeras tentativas de conseguir a documentação adequada. Desde que chegou em Guarulhos, na verdade. Com uma pilha de papéis nas mãos, Cauhy mostrou as inúmeras fichas preenchidas com as tentativas de obtenção do visto familiar. Das mais antigas, digitadas em máquinas de escrever e com fotos 3×4 coladas a mão, às mais modernas.
O filho, Mohammed, conseguiu vir uma vez, usando o visto de turismo e pedindo o status de refúgio. Ficou por aqui durante cinco anos, mas voltou para visitar a mãe no Irã. Com o advento da pandemia, não conseguiu mais voltar. Durante os dois anos que esteve preso no país, conheceu a esposa, casou-se e formou sua família – o que acabou por complicar ainda mais a obtenção da reunião familiar.
Na condição de nora de Aziz, a esposa do filho não entra no guarda-chuva de proteção do visto de reunião familiar. A forma mais provável de trazer toda a família seria com Mohammed vindo primeiro, tornando-se residente no Brasil, e então trazendo a esposa e o filho. É fácil imaginar porque a família teme que essa solução não funcione.
Em 2023 e 2024, Aziz foi a Teerã visitar a família e recorrer pelas solicitações que tem abertas na embaixada brasileira. Sem sucesso.
Ouviu que seu caso seria analisado novamente, e que isso é tudo o que pode ser feito no momento.
A família de Aziz é um exemplo dos problemas pelos quais passam os imigrantes no Brasil, em relação à burocracia.
Temos uma zona cinza: a embaixada do Brasil não está errada ao exigir a documentação estabelecida pela lei brasileira para registrar o visto familiar. É fato: há membros da família que não recaem sob a proteção da Lei de Migração, e há documentos faltando para a obter a aprovação do visto da esposa de Aziz.
Entretanto, é preciso refletir sobre o convite das ONGs, refugiados e entidades do poder público a repensar a legislação: há situações que exigem menos documentos, e mais agilidade. O governo brasileiro já criou dispositivos úteis para ajudar populações em momentos difíceis antes.
Voltar para o Afeganistão não é uma opção para a família Resaie, também por questões étnicas. O país é composto por cerca de dez etnias, entre grupos maiores e menores. Os Resaie são da etnia hazara, que descende de povos mongóis e ocupa sobretudo o Norte do país. Em sua maioria, os talibãs são pashtun, etnia dominante no país. Há conflitos entre o Talibã e minorias étnicas em diferentes regiões.
Enquanto refletimos, Aziz completa o 18º ano sem a família no Brasil. E outros imigrantes passam pela mesma situação, como Shogofa, Emran, Esmatullah, e outros personagens citados em reportagens do portal.
A primeira resposta que trouxe uma esperança verdadeira à família chegou no primeiro semestre deste ano. Usando o canal Fala.BR, canal direto da população com o Executivo brasileiro.
No e-mail enviado ao portal, Ana Cauhy cita mais de 27 e-mails encaminhados à embaixada brasileira no Irã, pedindo agendamentos para prosseguir com o processo de visto familiar.
“Os familiares do brasileiro, residentes em Teerã, já tentaram inúmeras vezes entrar na embaixada para entrega da documentação e sempre são impedidos por seguranças e atendentes. Ora alegam que precisam de agendamento, ora que devem procurar a embaixada de Islamabad. Às vezes dizem que são mentirosos e a documentação é falsa. A embaixada recebeu os documentos dele, mas nunca deu entrada no processo. Recomeçamos. Preenchemos os formulários novamente. Toda a documentação está correta e obedecendo a portaria. (…) Seus familiares correm risco de morte se voltarem ao Afeganistão, pois são de uma etnia diferente do governo Talibã”, escreveu.
A primeira resposta: “Seguimos em contato com a Embaixada do Brasil em Teerã, e a Divisão de Imigração (DIM) deste Ministério, a fim de obter esclarecimentos com relação ao caso que é objeto da sua solicitação. Tão logo uma resposta nos seja encaminhada, esta lhe será comunicada o mais breve possível.”
Pela primeira vez, receberam um protocolo, um processo de verificação aberto. Até o momento de fechamento desta reportagem, não havia novidades sobre o andamento do processo – leia-se, não andou.
A reportagem pediu esclarecimentos para a embaixada brasileira em Teerã, o MRI, o Conare e o MJ sobre a portaria 42 e a situação de Aziz, que até o momento, não foram respondidos.